É assim que as coisas funcionam no MMA. No dia seguinte o lutador entrará no octógono do Thunder Fight, considerado um dos maiores eventos de MMA profissional de São Paulo. Apesar de atuar como segurança privado em duas empresas, Acácio sonha em ter uma carreira de lutador.
Filho de família pobre, deixou a cidade de Ponto dos Volantes, 11 mil habitantes no nordeste de Minas Gerais, para se aventurar na capital paulista. Sua maior aspiração é um dia chegar ao UFC, o maior evento do esporte. Seu cartel é de 11 lutas e oito vitórias (seis delas por nocaute). Mas as três derrotas o deixam em uma situação delicada na carreira porque o UFC não costuma contratar lutadores com um número muito alto delas.
Uma quarta derrota significaria praticamente o fim do sonho do UFC. Um pequeno detalhe faz a próxima luta de Acácio ser ainda mais dramática. Seu adversário é Quemuel Ottoni, um lutador perigoso, filho de uma família tradicional no MMA.
Ottoni fez dez lutas desde que subiu no octógono pela primeira vez.
Ele nunca perdeu.
O grande dragão de komodo é filho de uma pequena dinastia
Naquela rua havia uma agência de banco que fechou sem aviso há alguns meses. No lugar dos caixas eletrônicos, foram instalados sacos de boxe e um piso de borracha. Um cronômetro na parede avisa quando chega aos cinco minutos, o tempo de assalto de uma luta profissional de MMA.
Onde antes havia filas de gente impaciente há hoje um octógono: um gradil negro de oito lados feito para separar a fúria dos lutadores do público em geral. Onde antes havia um bancário, há hoje Quemuel Ottoni, 23 anos, a pele na cor de café-com-leite, um bigodinho por fazer e as palavras JESUS CRISTO tatuadas no antebraço. Em hebraico.
Ele sibila a cada soco, a cada chute, a cada cotovelada que desfere sobre um homem careca, que aperta os olhos para receber as investidas do lutador de 91kg, no auge de seu vigor físico.
É só um treino, mas de repente o homem cai com as costas no chão. Quemuel projeta o corpo à frente, iniciando um espancamento de cima para baixo, o que na língua do MMA se conhece como ground and pound. Chão e porrada.
O homem careca não pode fazer nada além de se defender. Ainda bem que está vestindo umas luvas aparadoras, feitas com uma borracha que absorve o impacto dos golpes. A sequência de socos acaba. O homem careca se levanta e cumprimenta Quemuel, que está a três dias de subir no octógono para bater em alguém para valer.
Uma família feita de suor e luta
Quemuel nunca perdeu uma luta sequer e não acredita que vai ser agora.
“Eu respeito muito o Acácio”, diz o lutador sobre seu oponente de sexta à noite, “mas quando a gente subir ali é a mãe dele ou a minha que vai ficar chorando depois.”
Para Quemuel Ottoni, o MMA é um esporte de família, até porque o homem careca que acaba de lhe servir de sparring é Gilberto Ottoni, seu pai e também seu mestre. Gilberto, campeão de ao menos oito artes marciais diferentes, resolveu um belo dia criar o próprio estilo. Inspirado na filosofia kung-fu e em filmes de David Carradine, inventou técnicas e golpes e usou os filhos como cobaias da fundação do komodô (caminho do guardião, em japonês), a arte marcial da família.
O mascote da academia é um imenso dragão de komodo.
“Ele via fitas VHS de lutas, pensava em um golpe novo e acordava a gente no meio da noite para experimentar”, diz Israel Ottoni, o irmão mais velho, também lutador. “A gente acordava às quatro da manhã, treinava e ia para a escola às seis.”
Na escola, os irmãos se envolviam em brigas nas quais descobriram que a força e a violência poderiam ser um meio para sobressair entre os demais. Em casa, aprenderam a canalizar toda aquela agressividade para o esporte. Na família Ottoni, os três filhos e as duas filhas seguiram os passos do pai e em algum momento da vida subiram em ringues, tatames e octógonos para lutar.
Eles todos moram na mesma casa – 14 pessoas, contando com filhos, cônjuges e agregados, que vivem, conversam e respiram MMA 24 horas por dia. “Eu luto porque quero dar uma vida melhor para as minhas filhas”, me disse Quemuel, que já participou do Jungle Fight, evento considerado o mais importante da América Latina. “Mas não quero que elas sejam lutadoras.”
Quemuel transpira confiança quando fala de seu próximo desafio.
“Eu só sei de uma coisa”, disse ele no dia em que nos conhecemos. “Essa luta não vai ter os três rounds. Eu vou acabar com ela antes.”
O lutador que corta o cabelo antes de subir ao octógono
Na véspera do grande dia, Quemuel foi acordado por um amigo às três da manhã para se alimentar. Passada a pesagem precisava engordar novamente para a luta. Comeu um pacote de macarrão instantâneo sabor galinha caipira e voltou a dormir. Às 7h30 acordou outra vez e comeu mais um miojo.
No meio da manhã tomou café e foi se exercitar. Depois cumpriu um ritual que se repete antes de qualquer luta: foi ao cabelereiro passar máquina 1 na cabeça. Almoçou (mais macarrão, arroz e peito de frango), se despediu das duas filhas com um beijo e reuniu a família para uma última oração antes de pegar o carro rumo à zona leste de São Paulo.
Ele não gosta de ser incomodado nos minutos que precedem a entrada no octógono. Engata um fone nos ouvidos, fecha os olhos e começa a dar soquinhos no ar como se estivesse acertando em um inimigo imaginário. Alguma coisa invisível parece se soltar de seu corpo.
Incapaz de disfarçar a ansiedade caminha de um lado para o outro dando voltas em seu próprio eixo como um leão hiperativo preso no banheiro.
Ele finalmente escuta as caixas de som do ginásio anunciarem seu nome e uma fumaça de gelo seco toma o ar. Quemuel sobe ao octógono ao som de uma música épica que tenta traduzir a agressividade que ele quer transmitir como lutador. Com o olhar compenetrado, repassa mentalmente todas as formas com as quais pode finalizar Acácio Pequeno lá em cima.
Tiago Liasch/Thunder Fight
Depois dele, Acácio é anunciado. Ele sobe ao octógono tentando fazer cara de mau, mas como é um sujeito muito simpático, o resultado é um olhar que transmite uma atitude meio passiva, meio assustada.
Enquanto o gigante caminha em direção ao adversário mais perigoso que ele jamais enfrentara na carreira, o público canta a plenos pulmões a música que Acácio escolheu para sua entrada triunfal: “Chopis Centis”, dos Mamonas Assassinas.
Tiago Liasch/Thunder Fight
A dança esquisita e a brincadeira de gato e rato
Os lutadores tocam as luvas, acenam em sinal de que a porradaria já pode começar e passam a se movimentar pelo octógono como dançarinos de uma dança esquisita. Eles se olham fixamente, a guarda levantada na altura do queixo, mas durante os primeiros dois minutos de luta seus socos e chutes acertam apenas o ar.
Quemuel tenta um chute de carateca, e Acácio desvia com facilidade. Acácio faz seu braço pesado cair com força em direção ao peito do rival, que vira o corpo como em sincronia. “Ele não pode me derrubar”, pensa Acácio porque é isso que ele vem pensando o mês inteiro. Faixa-branca em jiu-jitsu, ele sabe que ir ao chão com Quemuel significa derrota praticamente certa. “Ele não vai me derrubar…”
Tiago Liasch/Thunder Fight
E então, Quemuel, mais leve e menor, agarra Acácio pela cintura, gira seu corpo no ar e o derruba com força no chão, imprimindo todo o seu peso sobre o adversário. Acácio responde com um esguicho de dor.
“Porra, Acácio!”, se desespera o treinador Magno Wilson e dá um soco no octógono.
Essa queda ajuda Quemuel a vencer o primeiro round. No segundo e no terceiro, Acácio consegue equilibrar a luta acertando bons chutes na coxa do rival, que tem dificuldade em responder. Durante muito tempo, os dois reencenam uma curiosa brincadeira de gato e rato: enquanto Quemuel tenta a todos os custos jogar Acácio no chão para finalizá-lo, Acácio luta para se manter em pé e despejar sua energia em forma de socos, chutes e joelhadas.
“Komodo, komodo, komodo”, canta uma parte da torcida. “Acácio, Acácio”, responde outra.
Os dois se agridem, se machucam, apanham, exibem um sofrimento dolorido a cada golpe certeiro, mas na volta de cada intervalo se abraçam fraternalmente para deixar claro que aquilo não é nada pessoal, eles são apenas lutadores fazendo seu trabalho.
Tiago Liasch/Thunder Fight
E então a corneta de ar soa pela última vez e o combate chega ao fim. Os dois estão de pé, os dois acham que venceram. Quemuel levanta os braços comemorando sua pretensa vitória. Acácio se joga ao chão de joelhos para recuperar o fôlego. O árbitro os puxa pelos pulsos e os coloca lado a lado.
“E o vencedor, por decisão unânime dos árbitros, é…”, anuncia a locutora, estendendo o suspense ao máximo…
“Acácio Pequeno Santos!”
Quemuel estende a palma das mãos e vira o rosto e faz cara de quem pergunta: “É sério isso?”
Tiago Liasch/Thunder Fight
“O lutador da casa tinha que vencer mesmo”, diz indignada a irmã de Quemuel, se referindo ao fato de que o treinador de Acácio, Magno Wilson, também é o funcionário responsável por acertar as lutas do evento.
O vencedor recebe os protestos como se não fossem com ele. No vestiário, enquanto tira as luvas, ouve de um companheiro uma frase para resumir a polêmica: “Quem bate mais chora menos.”
Ainda sorrindo – Acácio está sempre sorrindo, exceto quando está desidratando dentro de um carro-estufa, mas principalmente quando acaba de vencer a luta mais importante da carreira – ainda sorrindo, Acácio me avista no vestiário e agradece. “Obrigado por ter vindo aqui para ver tudo isso”, diz ele. “Você acompanhou todo o processo, viu como é a nossa vida.”
Eu penso em Acácio sofrendo dentro daquele carro, perto de entrar em colapso, suas mãos desesperadas procurando um objeto inexistente no ar, seus olhos revirando em desespero. “Valeu a pena?”, pergunto.
Acácio apenas sorri, assentindo.