É mais fácil ser gay no papel do que na TV, diz Milly Lacombe. Relembre o fato; confira.
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Do Zigzagdoesporte.com.br por UOL Esporte.
Em um dia de junho de 2006, o mundo de Milly Lacombe caiu. Estava no auge, após haver feito, como comentarista do Sportv, uma Copa do Mundo muito boa. Era reconhecida nas ruas, seu trabalho era elogiado na TV Globo, participava de muitos programas. Falava bem e sua voz era ouvida. Então, em um dos muitos programas que participava, fez um comentário ácido sobre Rogério Ceni.
Diz que não tinha simpatia por ele. Até aí, tudo bem. Depois, que não confiava nele porque o goleiro havia falsificado uma assinatura em uma proposta falsa do Arsenal para se transferir.
Falsificação é crime. E foi isso que ela ouviu, no ar, de Rogério Ceni. O goleiro telefonou para a emissora e teve o direito de confrontar Milly ao vivo. Prometeu um processo. Cumpriu.
A carreira de Milly decaiu. Foi para a geladeira. Depois, para a Record. Hoje, vive em Nova York, com sua mulher, uma advogada. Como Fernando Sabino, fez da queda um passo de dança. E diz, com absoluta convicção, que é uma pessoa muito melhor do que foi. Abaixo, a entrevista, feita por e-mail.

Milly Lacombe
UOL ESPORTE: Você era um dos principais comentaristas do Sportv. Estar assim no auge fez com que você se descuidasse e falasse que o Rogério falsificou a assinatura na proposta do Arsenal que apresentou ao São Paulo. Como um goleiro que pensa já ter a bola dominada, imagina o que vai fazer com ela e acaba levando um gol?
Acho que teve um pouco disso sim, mas se fosse apenas como o goleiro que tem a bola dominada e perde teria sido um erro cometido por displicência, e no meu caso acho que arrogância foi um componente forte.
Televisão é um meio traiçoeiro, porque mexe com a vaidade como nenhum outro. Que emprego tem como punição mandar o cara para casa com salário pago? Na TV a punição por um deslize é tirar a pessoa do ar por um tempo, a famosa geladeira. Ou seja, você fica em casa, recebendo salário e sem ter que trabalhar. Quase um prêmio em outras profissões, mas para quem trabalha em TV a geladeira é a antessala da morte.
Lembro da sensação de quando comecei a ser reconhecida na rua. É uma injeção de adrenalina, uma massagem no ego. Uma vez estava num restaurante e uma menina se aproximou e disse: “posso te fazer uma pergunta?”. Na mesma hora eu já cresci e fiquei muito orgulhosa de mim mesma. Eu sabia que ela queria um autógrafo, ou uma foto. E ela disse: “Onde você comprou essa bolsa?”. Eu preferia que ela tivesse me dado uma bofetada. Se é o olhar do outro que faz a gente existir, o olhar de centenas de outros faz com que tenhamos a ilusão de que existimos à milionésima potência.
Se a pessoa não está preparada – e eu claramente não estava – isso pode elevá-la a um lugar perigoso, ególatra e arrogante. Foi o que aconteceu comigo. Nos corredores me chamavam de lado para dizer: “você vai para o Esporte Espetacular”. “Você vai para o Jornal de tal hora com certeza”. “Você é muito boa!” Você vai se dar muito bem!” E isso foi me deixando segura e, como era imatura, essa segurança se transformou em arrogância. E a arrogância faz você achar que jamais errará.
UOL ESPORTE: Quando ele ligou para o programa, no ar, você percebeu imediatamente que havia errado?
Quando, depois que eu falei, chamaram o intervalo, eu vi a correria nos bastidores e entendi que havia feito uma merda. Ficava perguntando em voz alta o que exatamente eu tinha falado de errado, mas não me responderam. Quando a programação voltou e eu vi ele sendo anunciado para entrar no ar sem que eu tivesse sido avisada, gelei. Já não havia mais o que fazer porque estávamos ao vivo e eu percebi depois de alguns segundos que ele tinha ligado para me confrontar. Mas as câmeras já estavam em mim e o microfone aberto. Eu estava em queda livre e enxergando o inevitável: o chão se aproximando. Aí já estava muito claro que eu havia tropeçado, mas não sabia qual havia sido meu erro ainda.
UOL ESPORTE: Depois do programa, você teve apoio dos amigos?
Ah, amigos de verdade não vão embora depois que você erra. Acho que eles ficam por perto torcendo para que o erro seja digerido.
UOL ESPORTE: Tentou falar com Ceni?
Não, não houve espaço para isso. Falei com ele na audiência conciliatória, mas estávamos com nossos advogados e na frente de um juiz. Ele foi educado.
UOL ESPORTE: Alguém tentou uma aproximação?
Não.
UOL ESPORTE: O Ceni tentou uma conciliação?
Não.
UOL ESPORTE: Quando o caso foi para a Justiça, você foi afastada?
Eu fui afastada logo depois. A tal da geladeira. Fiquei bastante tempo, alguns meses, mas não lembro quantos. Aí voltei para o Arena e para os comentários em jogos
UOL ESPORTE: Quem pagou seu advogado?
A Globo cuidou de tudo.
UOL ESPORTE: Quanto você teve de pagar?
Nem sei quanto acabou ficando o acordo no final, soube que ficou muito longe do pedido inicial, embora não saiba dizer exatamente quanto. A Globo pagou.
UOL ESPORTE: Quais as consequências para você?
Acho que as consequências foram morais mais do que qualquer coisa. Você passa por várias fases logo depois de cometer um erro tão grande. Se errar sozinho dentro de um quarto já é ruim, imagina errar em rede nacional de TV. O baque é grande.
A primeira sensação é sempre tentar culpar alguém. Aí você finalmente entende que podem até ter te oferecido uma arma, mas quem apontou a arma para a própria cabeça e puxou o gatilho foi você. Na hora em que você percebe que não há quem culpar e que a responsabilidade do erro é sua as coisas mudam um pouco. Não ficam mais fáceis, mas aceitar a dor e o fracasso abre caminho para o resgate. E foi o que aconteceu.
Acho que o fracasso é subestimado nessa sociedade que não aceita nada menos do que o sucesso absoluto, que, pelos valores de hoje, é medido pelo dinheiro e pelo poder e por nada além disso. O fracasso humaniza. Ganhar é bom, mas perder é fundamental. No meu caso ele foi uma salvação. Eu acho que seria uma pessoa arrogante e cheia de pompa se não tivesse fracassado dessa forma. Ter que entender o erro, e depois aceitar, e depois superar e perdoar você mesma são lições muito valiosas.